O que o romance literário nos ensina sobre a política?
Por Jonathan Ree*
No ano de 1605 (ou por volta desta data) a literatura européia mudou. Ninguém teve consciência disso na época, mas quando "Dom Quixote" levantou vôo para salvar o mundo, nasceu um novo tipo de escrita. As antigas formas de narrativa - a épica, a romanesca, a do conto oral - daqui para frente se veriam obrigadas a encarar a briga contra um jovem rival impetuoso: o romance.
A arte de ler um romance implica num choque no contato com as experiências, em conjecturas e até mesmo em riscos. É preciso haver leitores para que se tente delinear perspectivas diferentes no plano da narrativa, dos estilos e até mesmo personalidades, de modo a explorar a variedade que é inerente à experiência, e reconhecer a parte de arbitrariedade que impregna toda versão possível dos eventos. Resumindo, os romances são implicitamente pluralísticos.
Em sua nova e luminosa coletânea de ensaios, "A Cortina", Milan Kundera argumenta que a virtude peculiar do romance está na sua capacidade de rasgar a "cortina mágica que serve de pano para as lendas" e que está suspensa entre nós e o mundo ordinário. A cortina foi colocada ali para encobrir a trivialidade das nossas vidas, as velhas caixas e sacolas esquecidas nas quais "um enigma permanece um enigma" enquanto a feiúra flerta com a beleza, e a razão corteja o absurdo.
Esses espaços menosprezados foram recuperados pela literatura, segundo Kundera, no exato momento em que Cervantes pôs os seus leitores para imaginarem Don Quixote enquanto ele está agonizando, no momento em que a sua sobrinha está ocupada em se alimentar, que a governanta saiu para beber e que Sancho Pança foi fazer jus à sua vocação "por boa comida". Ao inventar um narrador por intermédio da consciência do qual, tais eventos mudos pudessem ser elaborados de modo a estarem inseridos numa "cena" emocionante, Miguel de Cervantes criou uma forma de literatura capaz de fazer justiça aos "sentimentos modestos"; e, com isso, um novo tipo de beleza - que Kundera chama de "beleza prosaica" - nasceu.
Kundera sugere que os romancistas são especialistas no tipo de sabedoria moral que é "ciente de que ninguém é a pessoa que pensa ser; que este equívoco é universal, elementar, e que ele joga sobre as pessoas (...) o suave raio do cômico". Além disso, este ceticismo brando tem também implicações políticas, conforme constata Kundera ao relembrar "o Maniqueísmo" que desfigurou a sua Tchecoslováquia nativa quando ele era um estudante em Praga, depois da Segunda Guerra mundial.
A política, naquele tempo, não era um fórum onde cidadãos perplexos podiam se envolver numa busca coletiva pela liberdade e felicidade, ou pela verdade e reconciliação, e sim um campo de batalha onde militantes de partidos tentavam defender os seus pontos de vista sempre corretos sobre todas as coisas e punir qualquer um que enxergasse a situação de modo diferente.
Kundera aderiu ao Partido Comunista, no qual lhe foi ensinado que a arte precisa tomar partido numa histórica "batalha entre o bem e o mal", mas ele nunca se convenceu disso a valer. "A Arte não é uma bandinha de aldeia marchando obedientemente nos calcanhares da História", diz agora Kundera, e a própria política sufocará sem conseguir aceder à fluidez clemente do romance. "Somente o romance", explica ele, "poderia revelar o poder imenso e misterioso do que não faz sentido".
J.M. Coetzee aborda a política com uma combinação similar de ironia, de seriedade e de reticência imbuída de princípios. Por mais que as suas atitudes políticas estejam relacionadas com as dificuldades de ser um sul-africano branco e liberal, elas têm as suas origens intelectuais na sua prodigiosa obra de romancista. A sua mais recente coletânea de ensaios, "Inner Workings" ("trabalhos interiores") segue retornando à questão do "romance como forma", e de como Cervantes o criou no intento de demonstrar o poder da imaginação.
Uma das grandes virtudes do romance, segundo Coetzee, é de nos ensinar que não existe nenhuma maneira perfeita de construir um mundo melhor ou de narrar com detalhes as suas histórias. Esta é uma lição que também diz respeito à política, que pesa contra toda e qualquer aspiração política motivada por questões de nacionalidade, de identidade ou de lealdade tribal.
Mas Coetzee está longe de restringir a sua atenção apenas aos romancistas, e um ensaio estupendo sobre Walt Whitman lhe permite explorar uma concepção da democracia que ele mesmo, evidentemente, endossaria: a política democrática, sugere ele, "não é uma das invenções superficiais da razão humana, e sim um aspecto do espírito humano sempre em desenvolvimento, que tem as suas raízes em Eros". Aqueles que fazem da política um fetiche, conclui ele, correm riscos de se verem alienados da democracia.
Susan Sontag teria concordado com Coetzee a respeito da importância política significativa da literatura. O romance, conforme ela observa em sua última coletânea póstuma, "At the Same Time" ("Ao mesmo tempo"), existe para nos relembrar da noção de infindável diversidade que é a base do que ela chama de "política, a política da democracia".
Num ensaio substancioso sobre Victor Serge, ela elogia este autor por ele ter combinado a militância política com um engajamento sério na arte de escrever. A própria Sontag nunca achou muito fácil conciliar os langorosos prazeres da escritura imaginativa com a sua tendência impulsiva a dar declarações políticas contundentes. "A sabedoria da literatura é propriamente uma antítese do fato de ter opiniões", disse, e "um escritor não deve ser uma máquina de dar opiniões".
Mas ela continuou sendo uma tremenda presunçosa e em "At the Same Time" ela se aventura de vez em quando em monólogos, adotando um tom pouco atraente de dogmatismo, petulância, hipérbole e egocentrismo. Ela acha difícil falar sobre escritores sem nos dizer quem é ou não é "grande" ou "supremamente grande", como se a literatura mundial fosse um esporte de competição, e ela a juíza suprema. E a sua fúria diante da situação dos Estados Unidos - ela fala de uma "cultura da falta de vergonha", marcada por uma "crescente aceitação da brutalidade" na qual a política tem sido obliterada e "substituída pela psicoterapia" - parece tê-la conduzido a se esquecer do seu lado melhor como pessoa, e da sua clara descrição da sabedoria do romance: o conhecimento generoso de que, pouco importa o que esteja acontecendo, "alguma outra coisa está sempre acontecendo".
Percebe-se que Kundera, Coetzee e Sontag se incluem na categoria dos escritores que poderiam ter evoluído à distância da política se ela não tivesse avançado sobre eles. Mas Mario Vargas Llosa saiu do seu caminho para galgar poder político quando ele concorreu à presidência do Peru em 1990. Depois da sua derrota, Vargas Llosa retornou com alívio às suas antigas preocupações, e, em "Touchstones" ("Pedras de toque"), a sua nova coletânea de escritos variados, ele desenvolve uma análise sobre a questão da relevância política do romance.
O item o mais longo em "Touchstones" é um relato de uma extensa visita no Iraque em 2003, no qual ele narra a sua conversão relutante de uma oposição visceral à invasão ocidental para um apoio, ainda que cauteloso. O otimismo de Vargas Llosa em relação ao Iraque pode parecer excessivo, mas ele é temperado por uma sutil compreensão da responsabilidade política do romancista. Uma sociedade que ignora a literatura imaginativa, argumenta ele, está fadada a sucumbir às complacências bovinas e às idiotices populistas do nacionalismo, e, portanto, a degenerar em "algo parecido com um culto sectário".
Para Vargas Llosa, o nacionalismo é sempre "uma mentira", mas a sua refutação deve ser encontrada nem tanto no moderno universalismo internacionalista e sim nas particularidades desagregadoras da literatura, e especialmente num romance bem narrado.
O romance, pensa ele, articula um desejo humano básico - o desejo de ser "muitas pessoas, tantas quanto seria necessário para acalmar os desejos ardentes que tomam conta de nós". Alternativamente, ele corresponde a um direito humano básico - o direito de não ser o mesmo como pessoa, e ainda de não ser o mesmo como outra pessoa. Além disso, a história desafiadora da democracia começou não na política e sim na literatura, quando Cervantes foi o primeiro a tentar resolver "o problema do narrador", ou a questão de quem chega para contar a história.
*Jonathan Ree é um historiador free-lance e um filósofo
Tradução: Jean-Yves de Neufville
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sábado, 24 de novembro de 2007
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