Falta senso de realidade à imagem que o brasileiro constrói de si mesmo, do futebol à política
O ensaísta português Eduardo Lourenço disse certa vez que poucos povos no mundo tinham uma auto-imagem tão desprovida de lastro na realidade quanto o lusitano.
Portugal, de costas para a Europa e encantado com o seu vasto império de ultramar, teria por séculos desenvolvido uma visão grandiosa de si e do seu povo, visão totalmente descompassada com a opinião que o resto do mundo cultivava do pequeno, pouco letrado e pobre país peninsular. Eis que um belo dia, porém, se foi Salazar, se foi Marcelo Caetano, veio a integração comunitária e Portugal retornou à Europa.
Do retorno, não resultou somente a polpuda mesada da comunidade européia -o tal fundo de coesão-, que permitiu ao país andar um século em duas décadas, resultou também a comparação com os irmãos europeus, que cedo levou os lusitanos a “caírem na real”. Dizem, inclusive, que, ultimamente, o país foi assolado por uma espécie de “complexo de Lilipute”.
A esta altura, no entanto, os portugueses já haviam há muito tempo preparado um herdeiro, o Brasil, que desde muito cedo deu indícios de que superaria o mestre. Por aqui, também, malgrado os pífios resultados civilizacionais que alcançamos, sempre nos tivemos em altíssima conta, afinal, a natureza, Deus ou sei lá o que teriam compensado certos problemas locais com talentos e prodígios negados a povos mais esforçados -adjetivo que soa desprezível aos nossos ouvidos.
O país nasceu, não esqueçamos, sobre a égide do em se plantando tudo dá, e dá sem muito labor, pois a natureza é aqui mais mãe do que em outras plagas. Gostamos, ainda nos dias que correm -basta prestar atenção na propaganda governamental-, de alimentar, por exemplo, a velha idéia do paraíso tropical, idéia que, ao contrário do que se pensa, cedo abandonou os relatos dos estrangeiros e migrou ou para o discurso lusitano dos tempos coloniais, ou para o discurso nacional, inaugurado no alvorecer do século XIX. Aí a idéia ganhou vigor e ares de verdade, e isso não obstante as condições nada formosas em que sempre viveu uma parcela significativa da população deste exuberante e rico país.
A depuração nacionalista da idéia de paraíso tropical mostra, a propósito, uma técnica muito utilizada pelos brasileiros no processo de construção da tal imagem excessiva de si próprio: retemos somente os elogios e desprezamos as críticas associadas. A mulher brasileira, por exemplo: gostamos de ouvir acerca da sua beleza e sensualidade, porém, a reputação internacional de mulher fácil que vem associada a tais elogios, essa não nos interessa. Gostamos, igualmente, de ouvir o quanto somos simpáticos e hospitaleiros, mas não damos ouvidos aos comentários de que tamanha simpatia advém de uma incomensurável simploriedade.
Outra técnica que tem se mostrado muito proveitosa neste processo é evitar a comparação. Poucos povos têm tamanha aversão a serem comparados com outros quanto o brasileiro. É indescritível a aversão que nos causa -às nossas autoridades, sobretudo- aquelas listinhas classificatórias produzidas por organismos internacionais, nas quais, em geral, ocupamos péssimas posições. Tais listas soam quase como uma afronta ao brasileiro, não por que lhe cause perplexidade e tristeza constatar o quão mal caminhamos em certos setores, mas porque contraria, de maneira obscena e descarada, a ótima imagem que temos de nós próprios.
Há setores mais sensíveis à comparação. O setor futebolístico tolera-a bem, afinal, somos pentacampeões de futebol. Já no setor intelectual, a coisa não é tão pacífica. Desde muito cedo, acostumamo-nos a viver num ambiente nacionalista e complacente, onde pululam os gênios e os elogios. Há ilustrações para todos os lados.
Monte Alverne, por exemplo, um dos pioneiros daquilo que denominamos intelectualidade brasileira, ao explicar aos seus leitores como entrara no mundo da sermonística, faz um comentário acerca de seus colegas que bem ilustra em que conta os nossos sábios tinham-se uns aos outros: “Lançado na grande carreira da eloqüência em 1816, como pregador régio, oito anos depois que nela entravam S. Carlos, Sampaio, monsenhor Neto e o cônego Januário da Cunha Barbosa, tive de lutar com esses gigantes da oratória, que tantos louros tinham ganhado, e que forcejavam por levar de vencida todos os seus dignos rivais”.
Para a maioria esmagadora da intelectualidade brasileira do século XIX, os seus colegas eram todos “gênios incansáveis, homens dotados de raros talentos” -nenhum deles, graças a Deus, adquirido com esforço e trabalho, “virtudes” de gente sem talento –, enfim, “gigantes” nas atividades a que se dedicavam. Ora, num meio tão fechado e tão satisfeito consigo próprio, a comparação com outros meios intelectuais tornou-se desnecessária, desinteressante e, sobretudo, potencialmente comprometedora.
É, pois, compreensível e perdoável que, num recente exame de conhecimentos da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) -analisado por Carlos Alberto Dória, em excelente artigo para este Trópico-, 61% dos alunos brasileiros, não obstante terem obtido um desempenho pavoroso em matemática, indicativo de que não “compreendem convenientemente os conceitos de quantidade, espaço e forma, mudanças, correlações e incerteza, considerem-se bons em matemática, contra 36% dos coreanos e 28% dos japoneses. Os brasileiros também têm opinião de que sempre que estudam matemática se concentram no fundamental (86%), ao passo que apenas 26% dos japoneses têm essa auto-imagem de desempenho pessoal”.
Justiça seja feita, tamanha e tão completa ausência do que gostamos de denominar “senso de realidade” está longe de ser privilégio dos pobres colegiais brasileiros testados pela impiedosa OCDE. Os jovens tiveram onde se inspirar. Afinal, nascemos sob o estandarte do “em se plantando tudo dá”, ainda que dê somente para poucos, e atualmente, malgrado o desgoverno que temos diante dos olhos, vivemos sob o império do “nunca na história deste país...”. Diante de um histórico desses, alguém tem coragem de culpar aqueles meninos e meninas bons de matemática?
.Jean Marcel Carvalho França é professor do Departamento de História da UNESP-Franca e autor, entre outros, de "Literatura e Sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista" (Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999) e "Outras Visões do Rio de Janeiro Colonial" (José Olympio, 2000).
sexta-feira, 7 de dezembro de 2007
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário