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terça-feira, 16 de setembro de 2008

O Viajante Magnífico

Há algum tempo tinha a intenção de postar esse trecho aqui. Havia grifado, separado, e por fim esquecido. Mas eis que relendo um artigo de Wolfgang Smith me atinge o fato de que grande parte do enredo de O Viajante Magnifíco (download disponível no link), livro de Yves Simon, gira precisamente sobre a bifurcação descrita por Smith. Hora de reler alguns trechos do livro, e aproveito para finalmente postar este que segue.

Na noite anterior, durante o seu itinerário café-esplanada do hotel, ruas de Nairobi, bar do hotel, ela contara-lhe o que acontecera na região aonde se dirigiam.

“... Alterações geológicas importantes tinham provocado uma mudança ecológica. As montanhas recentemente formadas detiveram as chuvas vindas do oeste, e a floresta começou a desaparecer das regiões baixas para ceder o lugar à savana”.

“Uma parte dos macacos permaneceram nas montanhas e continuaram, de árvore em árvore, a comer frutos, folhas, bagas. Outros, que já nesse momento tinham deixado de ser autênticos macacos, mas ainda não eram homens, desceram até à planície. Foi aí que se deu o disparo... Um disparo que iria prolongar-se por vários milhares de anos. Para lobrigarem de longe não só a caça, mas também os perigos e provavelmente para se orientarem, eles começaram a aprumar-se. Para comerem melhor, os homens-macacos tornavam-se caçadores, e estar de pé tornara-se uma necessidade vital”.

Sucedeu-se uma longa pausa em que Adrien nada disse.

Beberricava uma atroz beberagem açucarada e picante à base de vodca que tinha sido misturada com um xarope de frutas de um verde fosforescente. Sentia-se ali com Maureen, ouvira o que ela acabava de dizer, mas estava ao mesmo tempo cinco milhões de anos atrás. Como se saísse então de um longo devaneio, pronunciou a custo: “Não consigo convencer-me de que foi unicamente... uma necessidade física que fez desencadear tudo... É... irrisório”.

Maureen não ficou impressionada com esta recusa de acreditar. Tratou logo de acrescentar que se tratava de uma explicação, na ocorrência a de Coppens, que ela achava não só plausível, mas também a mais convincente. É claro que já houvera mutações genéticas anteriores susceptíveis de permitir esta aprumação.

Numa voz sempre muito doce, lenta, ele continuou, como se ela o não tivesse interrompido: “Uma necessidade física...”.

- Você contou-me há bocado a tal história dos hipopótamos...
Sabe perfeitamente que os animais não olham para o céu, e quando levantam a cabeça na sua direcção, é fechando os olhos para bramir com toda a força... E se o homem, esse, se tivesse aprumado para olhar a beleza do céu, de olhos muito abertos, fascinado pelo azul, a imensidade e o mistério das estrelas...
Um desejo de imensidade... Como se urgisse, um dia, ligar o céu à terra, unir a força da gravidade ao infinito, a lama dos caminhos ao esplendor do firmamento... Os primeiros homens aprumaram os seus corpos, elevando-se na ponta dos pés, de braços estendidos para partir à conquista do céu... - é uma explicação com mais piada, não acha?

- Uma linda explicação poético-animista! Tudo está em tudo, os homens, a natureza, confundem-se... Sou uma cientista e todo o conhecimento em ciência se baseia no postulado da objectividade. A natureza é objectiva e o homem está sozinho no meio dela. Sozinho.

- Não faça troça. Você é cientista... e eu tenho-a em alta estima; é verdade que, nos últimos três séculos, a ciência é que produziu o nosso poderio de hoje, e nós sentimos, com justa razão, orgulho pelos seus êxitos... Mas tornou-se uma droga. Fora dela não há a mínima salvação. Ora, sabe muito bem que este poder teve de ser extorquido a sacerdotes que, mostrando-se bons diplomatas e lúcidos, depois de haverem resistido durante muito tempo, se puseram finalmente a ver com bons olhos que os cientistas se arrogassem o profano contanto que não tocassem no sagrado, que podia assim quedar-se seu domínio reservado. Mas hoje que Deus e os respectivos sacerdotes estão ausentes, e que vós ocupastes os seus lugares vagos, deixe-me imaginar que a vossa posição é tão precária quanto a deles e talvez um dia venha da mesma forma a desaparecer.

- Não gosta dos cientistas.

- Pois não, quando eles pretendem ser os únicos a ter razão, como se houvesse uma única fonte de verdade, a deles, quando afinal séculos de ciência não lograram extirpar dos nossos corpos o sublime, o sagrado, o desejo de infinito... Eu não me importo de ser um cigano do universo, de errar à superfície de um mundo indiferente, como um estrangeiro, e ninguém me tirará o desejo que tenho de conhecer ou de imaginar o que me liga a tudo, ao universo, aos seres, de sonhar todos os possíveis impossíveis... Fizestes-nos acreditar que estávamos em pleno progresso, ao passo que nos vemos reduzidos a ser pequenas coisas esmagadas pela tecnicidade, tudo se desagrega em nós, em torno de nós, e sobrevivemos dia após dia tendo esquecido a vida...

- A vida...

- Sim, a vida, ter tesão, folgar, acreditar, mentir, fruir, chorar, desejar... Adorar Tennessee Williams... Ser insensato...

Ele fora excessivo e tinham ambos ficado por ali. Fazia-se tarde. Ele receou ter melindrado Maureen e, ao levantar-se, passou-lhe o braço pelos ombros.

- Continue a procurar as suas tíbias, as suas maxilas, a espessura do esmalte nos dentes, é importante. Mas tenha a bondade de me escutar também quando eu digo que o homem se aprumou porque se pôs a olhar e a acreditar no céu.

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