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quarta-feira, 26 de março de 2008

O Édipo do Carrasco Myatt

Nota mental: aprender grego. Se há algo que me incomoda, me deixa num estado de suspensão de toda confiança, é ler livros traduzidos. A cada linha cresce a sensação de que estou sendo tapeado, “esse cara tá me enganando”, “acho que tem um erro de tradução aqui”... “hum... será que é isso aqui mesmo?”. Um exercício atroz de paranóia em níveis múltiplos.

Este desconforto creio ter adquirido no início da adolescência: em minha paixão pelas obras de Lewis Carroll li tudo quanto encontrei do autor em português. Essas poucas obras, Alice no País das Maravilhas e no País dos Espelhos, não foram o suficiente para conter meu frenesi literário, que só cessou mesmo quando encontrei toda a obra do autor no Gutenberg Project. Phantasmagoria, Sylvie and Bruno, Hunting of the Snark, ahhh! Fiquei tão fascinado pelos originais que acabei relendo os livros de Alice, dessa vez em inglês. Não descobri erros de tradução, na verdade, o que descobri foi que nunca havia lido Lewis Carroll afinal. O estilo do autor, que paira limítrofe, sem jamais tocar um lado ou o outro, entre a lógica e o absurdo, quando transposto para o português lega ao tradutor a difícil tarefa de escolher um dos lados, ou reinventar alguns trechos. Bom, mas isto é só um caso especial onde o tradutor é um coitado obrigado a meter, a contragosto, o dedo no sentido do texto. Além do mais, sendo o original em inglês, eu ao menos tinha a possibilidade de consultá-lo.

O capeta eu vi mesmo na semana passada. Durante a leitura de Édipo Rei acabei me deparando com o seguinte trecho da fala de Jocasta, traduzida por D.W. Myatt:

You should not fear being married to your mother:
For many are the mortals who have - in dreams also – [2]
Lain with their mothers, and he to whom such things as these
Are as nothing, provides himself with a much easier life.

Corri para o fim do livro para ler a tal nota [2]. Myatt: dizia que esse trecho era importantíssimo para compreender como Sófocles e os gregos em geral entendiam o incesto cometido por Édipo. Que seria, apesar de uma desgraça e um desrespeito, “nothing to seriously concern oneself with”. Achei interessante essa maneira Myatt de levar a vida. Fiquei pensando no que seria então algo to be seriously concerned with para o nosso querido tradutor. Como será que ele classifica o patricídio? The-great-uber-mother-fucking-disgrace? Aliás… tira o mother-fucking. Continuando, segundo ele, o trecho “in dreams also” é geralmente traduzido inserido diretamente na frase, e não como uma concessão, o que geralmente leva a algo como o seguinte: "many are the mortals who in dreams (and also in prophecies) have lain with their mothers...". Coisa dos malditos tradutores-moralistas-cristãos, diz Myatt.

Eu odeio traduções, isso eu já disse, mas o que me saltou mesmo aos olhos foi esta coisa histriônica de dizer que todo o mundo parido anteriormente está errado, dando como causa do erro o fato dos tradutores serem "moralistas cristãos". Fiz bico, fiz manha, olhei de um lado pro outro, mas enfim aceitei a contragosto a “revelação” e continuei lendo o livro de Myatt. Mas minha paranóia, que já não é pouca, triplicou.

A teoria do incesto como “desgraça pouca” já era ridícula por si só, mas eu precisava de provas. Para isso eu precisaria aprender grego (hum... não), ou assumir que o que Myatt diz sobre outras traduções é verdade. Aceitando a segunda opção, fiquei aleijado de procurar outro tradutor para me apoiar. Fui obrigado a me trancar dentro da masmorra escura do texto de Myatt. Toda frase precisava ser relida, todo parágrafo merecia ser esmiuçado em busca de algo que comprovasse a incompetência ou canalhice do tradutor. O que deveria ser uma leitura acabou tornando-se um exercício tenso e doloroso. Sentia-me um ladino trancafiado. Sozinho e largado para apodrecer, eu não podia confiar em nada, em nenhuma palavra, em nenhuma sentença. Eu precisava buscar um sentido superior no que lia, tatear as paredes em busca de uma passagem secreta, ir além do texto e escapar prisão que era ler o Édipo do meu carrasco Myatt.

Então uma pedra rangeu. O esforço valeu a pena.

Myatt diz que os gregos não viam no incesto materno algo assim tão preocupante, era uma desgraça, um desrespeito, então a agonia de Édipo vinha muito mais do parricídio. Mas como explicar o seguinte? (1) Édipo em TODAS as vezes que lamenta o patricídio, lamenta também ter se casado com sua própria mãe. (2) Édipo quando dirigindo-se a Antígona e Ismene (suas filhas com Jocasta) lamenta apenas do incesto.

Assumindo que o Édipo de Sófocles expõe seus sentimentos sem omissão (o que é bem normal já que se trata de uma tragédia grega), a primeira observação já levanta sérias suspeitas sobre a teoria de Myatt. Édipo, nos casos em que lamenta o parricídio e o incesto, segue a ordem dos fatos: diz ter matado seu pai, e segue dizendo ter casado com sua mãe, e ele segue essa ordem em todas essas vezes, já que o casamento com sua mãe imprescinde da situação anormal da ausência de seu pai, que nesse caso é explicada pelo patricídio cometido por ele. Então, pela sequência dos fatos, seria normal para Édipo lamentar o parricídio sem lamentar o incesto, mas não lamentar o incesto sem lamentar o parricídio que criou a situação anormal que lhe permitiu o primeiro. Apesar de tudo, ao longo do texto Édipo lamenta mais o incesto do que o parricídio.

Mas sobre isto ainda paira uma certa dúvida, pois em todas as vezes que Édipo lamenta apenas o incesto (sem seguí-lo do parricídio), o faz direcionando suas lamentações à Antígona e Ismene. Poderia-se então dizer que nesses casos Édipo não está a lamentar a sua tragédia pessoal, mas a tragédia que legou às filhas, que são os seus confusos graus de parentesco. Com isso volta-se à estaca zero.

Então eis que o seguinte trecho lança uma luz:

For, if I had eyes, I would not know where to look
When I went to Hades and saw my father
Or my unfortunate mother, since to both
I have done what is so outstanding that a strangling is excluded.


Édipo nos diz que o que ele fez aos seus pais foi algo tão horroroso que torna o estrangulamento (enforcamento) de Jocasta algo irrelevante. Mas o que é que Édipo considera assim tão terrível, o parricídio ou o incesto? Ele nos diz adiante:

Those deeds that I did there, and then, when here,
What I also achieved? You - those rites of joy
Which gave me my birth and which planted me anew
By the same seed being shot up to manifest fathers,
Brothers, sons - the blood of a kinsman –
Brides, wives, mothers: as much shame
As can arise from deeds among mortals.


Cá está. A vergonha suprema, segundo o próprio Édipo, foi o seu atentado contra o sangue da família, foi ter misturado incestuosamente o sangue de irmãos, pais, filhos, noivas, esposas e mães.

Pronto, senhor salvador, eu posso não saber nada de grego, mas vai arrumar outro trouxa pra enrolar, vai. O pior é que, depois de tudo terminado, depois de sair todo sujo de merda da masmorra do carrasco Myatt, vou ter que reler tanto Édipo Rei quanto Antígona. Dessa vez escolhi a masmorra de um tal Storr. Tomara que seja um moralista cristão.

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